Os cubanos Patrícia Girbau, 32, e Fernando Martinez, 38, contam os dias para poderem trazer a filha e reunir a família novamente. Maria Fernanda, de 10 anos, ficou com os avós maternos em Cuba, enquanto Patrícia, Fernando e o filho mais novo, Daniel de 8 anos, tentam recomeçar a vida no Brasil.

Em busca de uma vida melhor, o casal decidiu deixar Cuba clandestinamente e imigrar para o Brasil, numa viagem que durou quase um mês e levou praticamente a reserva de US$ 7 mil resultante da venda da casa própria, pouco antes da partida.

Hoje, eles moram em Salvador, capital baiana. Assim que chegaram ao Brasil deram entrada na papelada para obter a condição de refugiados — só assim, podem solicitar a vinda da filha. “Em novembro deste ano, vai fazer um ano que estamos aqui. Temos que esperar um outro ano mais, para entrar no processo para que ela possa vir, sem que tenhamos que ir para lá”, conta Patrícia, esperançosa. No momento, o processo ainda está tramitando e eles aguardam o resultado.

O processo administrativo foi aberto no Conare (Comitê Nacional de Refugiados), órgão federal vinculado a cinco ministérios brasileiros, responsável por este tipo de demanda. O período médio entre a solicitação do refúgio e a finalização do processo leva dois anos. No entanto, por conta da pandemia, a espera pode ser maior.https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-37/html/container.html

A Lei Brasileira de Refúgio considera como refugiado qualquer pessoa que saiu do seu país de origem por temer perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social, opiniões políticas imputadas ou por uma situação de grave violação de direitos humanos. Mesmo se a entrada no país for feita de forma ilegal, enquanto o pedido for analisado, os indivíduos não podem ser investigados ou multados.

Ainda de acordo com a lei brasileira, toda pessoa com processo de refúgio em andamento tem direito a documentos de identidade (protocolo provisório) e carteira de trabalhado provisória. Além disso, os solicitantes podem frequentar escolas públicas e receber atendimento de saúde em quaisquer hospitais públicos do país.

Para trazer a filha para o país, Patrícia e Fernando precisam ter o processo de refúgio aprovado para, então, solicitar também no Conare a reunião familiar. Na letra fria da lei, “a pessoa refugiada, que tenha sido reconhecida como tal pelo governo brasileiro, pode solicitar a reunião familiar de seus familiares que dependam economicamente e estejam fora do país”.

A vontade de deixar Cuba era antiga, mas o casal não tinha condições financeiras para fazer a viagem e, por isso, o sonho foi adiado por alguns anos. Moradores da cidade de Camaguey, região central da ilha e capital da província de mesmo nome, os dois tem diploma universitário. Patrícia é formada em informática e Fernando, em psicologia.

Eles contam, no entanto, que a renda do casal mal dava para o orçamento de uma semana. Para complementar, Patrícia ainda trabalhava como uma espécie de administradora de uma lanchonete. Somados os dois empregos eram jornadas de 12 a 15 horas diárias, para ganhar 75 pesos cubanos (CUP), o equivalente a, mais ao menos, três dólares por dia. Ela lembra que com o que ganhava conseguia ao menos comer, mas nem sempre.

“Eu preferia comprar a merenda para a escola dos meus dois filhos”, diz.

A falta de perspectivas fez com que eles decidissem, em 2019, vender o único bem que tinham: a casa em que moravam, herdada por Fernando após o falecimento da mãe, vítima de um câncer.

“O dinheiro não foi o suficiente para pagar a passagem dos quatro, eu, minha esposa e nossos dois filhos. A minha filha, de dez anos, precisou ficar em Cuba com os avós maternos. O que pensávamos era chegar no Brasil, trabalhar e poder trazê-la para cá. Mas já tem nove meses que estamos aqui e ainda não conseguimos isso”, lamenta Fernando.

A viagem para o Brasil

Foram precisos exatos e exaustivos 21 dias para que a família conseguisse superar os mais de cinco mil e setecentos quilômetros de distância que separam Camaguey, em Cuba, de Salvador.

Apesar de laços religiosos e políticos entre a ilha socialista e a capital baiana, que incluem a relação entre a santeria e o candomblé (duas religiões com divindades iorubás), e a insólita amizade entre Fidel Castro (1926-2016) e o ex-governador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães (1927-2007), nos anos 1990, nenhum destes fatores impulsionou a escolha do destino do casal.

A decisão foi uma indicação familiar. Um primo de Fernando imigrou para Salvador meses antes e, nas conversas, propagandeava que rapidamente conseguiu alcançar uma vida confortável, com casa e emprego bem remunerado. Buscando objetivos semelhantes, o casal partiu com o filho até a Guiana, no dia 7 de setembro de 2019.

De lá, foi feita a travessia da fronteira com o Brasil. Já dentro do país, a primeira capital na qual pisaram foi Boa Vista, em Roraima. Até chegar a Salvador, foram necessários mais voos e horas em ônibus por todo tipo de estrada. Em 24 de novembro do ano passado, o périplo finalmente terminou com a chegada ao destino – marcada por decepção.

“Quando chegamos na casa de meu primo nos demos conta de que tudo era mentira. Tudo que ele falava que estava bem, não era verdade. Ele morava em uma situação ruim, não tinha condição nem de morarmos com ele temporariamente”, relembra Fernando.

Decepcionados, com o dinheiro acabando e sofrendo com a separação da filha, a família quase desistiu de fixar residência no Brasil e pensou em retornar imediatamente ao país natal. A vontade de melhorar as condições de vida, no entanto, falou mais alto. Patrícia e Fernando decidiram persistir e começaram a busca por uma moradia. Foi quando as coisas começaram a mudar.

A sorte na Bahia

A dona de um dos imóveis que eles tentaram alugar ficou comovida com a história da família de refugiados. Dona Cica, como é chamada pelos dois, decidiu acolher a família sem fazer muitas perguntas.

Mesmo com a resistência do casal, ela não tem cobrado o valor do aluguel, cabendo aos estrangeiros às despesas da casa.

“Quando ela conversou conosco e nos conheceu um pouco mais, ela não quis cobrar o aluguel. Porque ela sabia que estava difícil conseguir um emprego, e ela queria ajudar. Ela é como se fosse uma mãe para a gente aqui, temos qualquer problema e ela logo corre para nos dar assistência”, conta Patrícia.

A expectativa inicial era de que, em no máximo três meses, eles conseguissem encontrar um emprego e pudessem assumir definitivamente as contas. Muitos currículos foram entregues. Patrícia chegou a fazer entrevistas, mas não foi contratada.

Uma das soluções foi vender bolos, café e leite pelas ruas de Salvador. Com a chegada da pandemia e o consequente fechamento do comércio, a partir de março, a situação piorou. Foi neste momento que a rede de apoio iniciada por dona Cica cresceu, ganhando novos adeptos.

Tocada pela penúria enfrentada pelos cubanos, a vizinha Luísa Caetano organizou uma vaquinha na internet para arrecadar dinheiro para a família. Eles conseguiram juntar R$ 3,5 mil, que seriam usados inicialmente para bancar a vinda de Maria Fernanda e o reencontro da família. Mas eles descobriram que teriam de aguardar o final do processo burocrático do Conare.

“Então, decidi que a melhor opção seria usar o dinheiro para profissionalizá-los de alguma forma”, relata Luísa. “E o que mais estamos consumindo em meio a essa pandemia é comida. Entrei em contato com uma famosa dona de uma escola de gastronomia aqui em Salvador, contei a história deles e ela se prontificou a ajudar Patrícia.”

O pão delícia baiano, com toque cubano

Embora o acarajé, vatapá e moqueca sejam as iguarias mais conhecidas de Salvador e do Recôncavo Baiano, o legítimo soteropolitano sabe que um dos quitutes mais consumidos em aniversários, batizados e cerimônias festivas é o pão delícia.

O pãozinho, geralmente recheado com queijo ou patê, foi criado em Salvador pela cozinheira Elíbia Portela, em 1970 (embora nunca tenha patenteado a criação). Na culinária cubana, segundo Patrícia, não há nada que se aproxime do pãozinho delícia.

“Eu já cozinhava. Mas pão, não. Muito menos um pão baiano. Mas depois da aula, eu cheguei em casa com a receita e os ingredientes e falei para Luísa, hoje é o dia, vou fazer uma tentativa. Não sei se foi coisa de Deus, mas deu certo”, conta.

Deu tão certo que Luísa criou uma página no Instagram, chamada Patrípan – Pãozinho Delícia. Eles começaram a vender o produto por meio das redes sociais, contando com serviço de entrega. Poucos dias depois, as encomendas começaram a chegar de todos os lugares de Salvador. Para dar conta das entregas, eles estão tendo que trabalhar durante todo o dia e até à noite.

Durante a entrevista por chamada de vídeo para a BBC News Brasil, Patrícia contou que já tinha feito 130 pãezinhos e teve até que recusar pedidos, porque, por enquanto, não tinham estrutura suficiente para dar conta da crescente demanda — eles têm apenas um fogão, doado por uma pastoral.

Pastoral e procura por emprego

Com a ajuda de dona Cica, Fernando e Patrícia conheceram o padre Manoel Filho, que coordena a Pastoral do Migrante, da Paróquia Ascensão do Senhor. O projeto acolhe os refugiados que chegam até Salvador, além de fazer encaminhamentos para diversos serviços, como a busca por advogados, médicos e por emprego. Eles já receberam pessoas de Cuba, Venezuela, Haiti e Senegal. Atualmente, o projeto ajuda cerca de 60 pessoas.

O casal cubano começou a receber ajuda, e por um grupo de WhatsApp do próprio projeto, souberam que a paróquia estava doando um fogão. Patrícia manifestou interesse e pode levar para casa o eletrodoméstico, que hoje está ajudando a garantir a renda da família.

Com a venda dos pãezinhos, os cubanos estão melhorando as condições de vida. Fernando continua procurando um emprego, e não apenas na área em que é formado. O objetivo é ficar em Salvador, conseguir pagar o aluguel, as contas e juntar dinheiro. Voltar para Cuba não faz mais parte do horizonte.

“Eu sei que eu tenho que ficar aqui, mesmo ainda não tendo emprego fixo. Tenho esperança de que em algum momento algo aconteça. Aqui se tem liberdade, você pode viajar, passear, isso não tem preço. Em Cuba você é uma pessoa presa, e a liberdade é o mais importante que uma pessoa pode ter. E é uma coisa que lá ninguém tem”, conta Patrícia.

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