Na semana que marca os 59 anos do golpe de Estado de 1964, a Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia reuniu mães e familiares de vítimas da violência policial ao longo dos últimos anos em um debate na Câmara dos Deputados, em Brasília, na tarde da última terça-feira, 28. O evento foi marcado pela comoção das pessoas que seguem sofrendo na pele a ação brutal das forças de segurança do Estado, mesmo décadas após o fim do regime autoritário no país.
É o caso de Bruna Silva, mãe de Marcos Vinicius Silva, que morreu aos 14 anos durante uma operação policial o Complexo de Favelas da Maré, zona norte do Rio de Janeiro, há quase cinco anos. Na época, o caso ganhou grande repercussão nacional, mas até hoje não houve justiça. Naquele momento, em 2018, o Rio de Janeiro sofria uma intervenção federal na área de segurança pública, com participação das Forças Armadas.
“Meu filho foi morto aos 14 anos e [antes de morrer] me fez uma pergunta: ‘Mãe, pelo amor de Deus, o que eu fiz? Eles não me viram com roupa e material de escola?’ Mesmo que não tivesse com roupa e material de escola, qual é o problema? O papel do Estado não é entrar para matar. A gente precisa de saneamento básico, de uma luz, de um relógio [de água]”, protesta Silva, que é uma das fundadoras do Coletivo Mães da Maré, que atua em defesa dos direitos humanos na favela e por memória, justiça e reparação. “O Estado mata uma família inteira porque adoece, as mães vêm morrendo. A gente se joga na luta não é por estrelismo, mas para não morrer mesmo”, acrescenta.
“Todos os filhos assassinados pelo Estado estão presentes na nossa voz, que não se cala, e vamos lutar por justiça”, bradou Ana Paula Oliveira, fundadora do Coletivo Mães de Manguinhos. Ela também é mãe de uma vítima, o jovem Jonathan Oliveira, morto em Manguinhos, favela do Rio de Janeiro, em 2014, por um policial da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Na época, ele tinha 19 anos.
Luta atualizada
Um dos pontos do debate desta terça, no contexto de memória sobre as violações durante a ditadura militar, é justamente transpor essa luta para as vítimas atuais de violência do Estado, marcadamente populações periféricas das grandes cidades, especialmente a juventude negra que vive nessas áreas.
“O tema da ditadura é algo de penetração muito difícil na sociedade brasileira. Historicamente, as pessoas do presente têm dificuldade de se conectar. É por isso que principal ganho para essa luta por memória, verdade e justiça e reparação é quando incorporamos os novos agentes dessa luta, que são essas vítimas da violência policial”, argumenta Gabrielle Abreu, coordenadora da área de memória, verdade e justiça do Instituto Vladimir Herzog e integrante da direção executiva da Coalizão.
Para Abreu, a falta de uma verdadeira justiça de transição no país, após o fim do regime militar, é um dos fatores que mais contribuem para a reiteração dessa violência. “A falta de cuidado, naquele momento, acaba refletindo hoje num certo aperfeiçoamento da maneira como, por exemplo, as polícias agem nas periferias e favelas brasileiras, uma cultura de impunidade que a ditadura não inaugura, mas acaba consolidando”.
Estado que mata
Há quatro meses, Gabriel Vilar, de apenas 18 anos também foi morto em uma operação policial na comunidade Nova Holanda, que também faz parte da Maré, no Rio de Janeiro. “Os sonhos do meu irmão foram interrompidos por um Estado genocida”, desabafa Rafaella Vilar, de 28 anos, irmã mais velha de Gabriel. Segundo ela, seu irmão foi alvo de cinco tiros e outros cinco golpes de faca. Seu corpo teria ficado por várias horas em poder de policiais até ser entregue para a família. “Os policiais arrastaram o corpo do meu irmão como se ele fosse um bicho, de uma rua para outra. A pele dele saiu toda, ficou em carne viva. Quando aconteceu [o crime] eram 11h30 da manhã, meu irmão foi encontrado às 5h da tarde”, relata.
Bruna Mozer de Souza conta que seu filho, Bruno Luciano Mozer, foi executado aos 18 anos, na comunidade do Muquiço, em 2018. “Tomou um tiro no ombro, se rendeu e foi morto em seguida com um tiro na cabeça”. O enterro foi no dia do aniversário da vítima e ela teve que promover uma “vaquinha” na favela para arrecadar os R$ 2,8 mil usados nas despesas do enterro. Na época, o Estado registrou Bruno como filho de pais desconhecidos e com residência ignorada. Esse descaso do Estado faz com que Bruna andasse sempre com o atestado de óbito do próprio filho na bolsa, uma forma de dar dignidade à sua memória, como alguém que tem família.
Após mais de 14 anos do assassinato do irmão, Luciano Norberto dos Santos ainda aguarda o julgamento dos agentes policiais envolvidos o caso. “Executaram meu irmão com um tiro na nuca. O perito chegou à conclusão que meu irmão poderia estar com o braço levantado [quando foi alvejado]”, conta. “Ele estava subindo do trabalho para casa quando os policiais pegaram ele e subiram com ele até o alto do morro”, acrescenta. O júri popular do caso está previsto para os próximos meses. “Não é vingança, queremos justiça”.
Para Gabrielle Abreu, do Instituto Vladimir Herzog, as práticas violentas dos Anos de Chumbo serviram de herança para o que vemos hoje. “A ditadura criou dispositivos ideológicos e práticos de violência que acabaram se perpetuando ao longo de décadas, mesmo depois do fim do regime militar, porque não houve essa justiça de transição”.
Fonte: Agência Brasil
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